QUER MACEDÔNIA
Ó doce Heféstion,
De longas melenas êneas
E olhos fulgentes
Como a face de Urano
A refletir os encantos
Diurnos de Apolo,
Encantos que penetram
Teu olhar marejado
E iluminam o Titã que vejo
Em suas profundezas oceânicas;
És melífluo aos lábios
Que sorvem teu beijo
E à língua que prova
Tua cútis cálida ao deixar a marca
Da boca sedenta e ávida
Que morde com desejo!
Apesar do teu nome,
És tão belo que de Hefesto
Recebeste apenas
O calor de sua forja,
Capaz de a frieza
Do metal aquecer
E derreter a dureza
Do poderoso gládio!
O único metal
Que aos teus encantos
Flamígeros resistiu,
Enferrujado esfria
O imortal peito de Tânato!
Ah! Como te venero,
Meu vigoroso Herói,
Meu poderoso Apolo!
Venero cada bela cicatriz escrita
Em teu corpo, contando nossa história;
Venero como eram acariciados
Pelas comas os teus ombros largos;
Venero como tua deiforme face
A singeleza do sorriso cinzelava
– pelo Musageta inspirado,
até o esboço é arte magna!
Ao ver-te símile ao deus,
Esquecia meu sangue Aquileu:
Sentia-me a própria Rainha Hécuba
A se entregar exultante, sem imaginar
Os infortúnios que estavam a tecer
As Moiras em sua aracnídea trama!
Sentia-me qual Musa
Em teus braços alentados,
Sentia-me Tália, Urânia...
Próximo ao teu alento,
Era a jubilosa Ninfa Cirene!
Sim, por vezes esquecia
Meu sangue Aquileu,
Pois não sou tão jovem
Como o belo Príncipe
E tu não eras tão maduro
E experiente quanto Pátroclo,
Que ao Pélida se entregava
Em submissão apaixonada
– ainda que na intimidade
da alcova por vezes
esqueciam os dois a coroa
a fim de experimentarem
posições diferentes
e com prazer respeitarem
os costumes vigentes!
Por sermos em idade
Pouco diferentes,
Subvertíamos os costumes
Com nosso amor sincero,
E me deleitava no leito
Quando já não era o Rei
Dominador e conquistador,
E apenas me entregava
Apaixonado e conquistado
Como Rainha ou donzela!
E como bela donzela,
Voltava a me recordar
De meu sangue Aquileu
E me sentia a (e)terna Pirra
Nos braços de Morfeu,
Com a face e as madeixas
Douradas mergulhadas
Em teu suado e acalorado peito
– nele ouvia a voz macia
que junto às suas batidas
lépidas me embalava!
Mas somente assim
Me sentia – bela donzela –
Quando me seduzias
A fim de me levares
Ao leito para deleites e risos,
Fazendo com que eu me sentisse
Frágil, delicada e quebradiça
Qual cristalino cálice a estalar
A cada afetuoso abraço,
Onde me perdia no perfume
Oleado de tuas melenas lisas
E na força dos teus braços,
Que ao meu peito impediam
O palpitar e depois o aceleravam;
Que minhas coxas afrouxavam
Enquanto ao ouvido blandícias
Sussurravas para corar as virilhas,
E com teu queixo áspero frêmito
Provocavas do pescoço ao dorso!
Mas o olímpico torso
Que antes apertava meu peito
A cada forte movimento
Ofegante e acelerado de excitação;
Que vitalidade me insuflava a cada beijo
Ao mesmo tempo em que a sofreguidão
Inspirava-me o evaporado desejo
Junto a toda a minha respiração;
Agora deu seu último alento
E vida em um movimento
Penoso e débil, em um último
Beijo de sabor amargo
– senti o veneno que tinge
teus finos e púrpuros lábios!
Se ao menos um gole
Houvesses guardado
Para um beijo de amor e morte,
De mãos dadas partiríamos
Para o umbrífero Hades
E tão só não te sentirias!
Ao não viveres junto a mim,
Fazes com que eu perca
O essencial amor à vida,
Aos víveres e aos viventes!
Já não serei inebriado
Com o deleitoso e perfumado
Licor de Dioniso que solícito
Oferecias aos meus lábios
E derramavas em minha boca
– ao vê-la voluptuosa
ao transbordar deleite,
te deliciavas ao sorver
cada gole com um beijo!
Se a vida foge a estes olhos
Antes brilhantes e agora apagados,
O amor foge ao meu coração,
Agora trevoso e sombrio, enlutado!
Ó jovem Heféstion,
Se o coração negro sangra,
Como pode um homem
Perceber ainda os matizes
Por Íris pintados no afresco
Dos poderosos celícolas?
O que resta ao brioso Aquiles
Senão chorar a morte de Pátroclo?
O que resta senão lavar
Com a água salgada de um olhar
Desolado ao inanimado corpo
Que antes animado lavava
Com água doce e untava
Com óleos finíssimos?
O que resta senão prepará-lo
Para os ferais ritos e buscar
Pela consoladora vingança,
Clamando pelas Erínias?
Neste grande leito
– antes cálido e cheio de vida –
Nos banhávamos nas águas
Turbulentas e delas bebíamos,
Mas ao ver a vida seguir
Seu curso e frígida se esvair,
Nada além de pranto beberei
E com ele incontido afogarei
O mundo em mortal dilúvio!
Se foi Roxana a assassina,
Pelo veneno dos ciúmes
Tomada a dar-te seu veneno,
Do Hades me verás ignorar
Meu amor por essa mulher
Da mesma forma que me vias
Ignorar minha protetora Atena
Ao ser tomado pela fúria,
E me verás dar a conhecer
À imprudente bárbara
A mesma cólera com a qual
Brindo festivamente aos inimigos
No rubro campo de batalha
– quando sedento bebo
seu sangue no cálice de Ares!
Se a peçonha saiu da perfídia
Que destila Olímpia ofídia,
Não gozará da indulgência
Que a maternidade regala
Até mesmo às víboras!
Se foi um daqueles
Que invejam o teu amor,
Não terá a comiserada
Punição de Parmênio:
Aguarda-o suplício tão atroz
Que implorará pela punição
Excruciante à qual condenei
O Sacerdote de Asclépio!
Com tua partida, o amor,
A jovialidade e a lealdade
Abandonam o mundo
– são transformados em mito!
Por isso, beberei seu sangue,
O qual derramará ferruginoso
A cada golpe do gládio,
E com sua dor me embriagarei
Para esquecer a minha própria,
Para esquecer teu destino
– a vida jaz em meu corpo,
esquecida por mim em virtude
do amor que morre contigo!
Sim, hoje morri, e se ainda
Caminho entre os vivos
É para vingar-te, para trazer-lhes
Nosso ódio e o suplício das Queres!
Na verdade, aqui em teu leito
Já não me sinto Rainha
Ou Musa ao ver teu corpo inerte
E experimentar um misto de ódio,
Dor e saudoso desejo;
Mais pareço a uma Quer
Observando ávida o ofício
De seu irmão – ver-me-ão
os traidores como uma a beber
de seus corpos o sangue da traição!
Não sei ao certo o que
Com teu corpo quer a Morte;
Não sei se virão por ele
As Queres ou se bastará
De Tânato argênteo o frio toque,
Então em Quer metamorfoseado
Seguirei a fim de ao fim protegê-lo
Do cortejo de Ares e feroz vingar-te
Como violenta e reconfortante parte
Das honras do teu majestoso funeral!
Ó nefandas filhas da Noite,
Qual de vós ansiais
Ser comensal da Morte?
Qual de vós desejais sentar-se
À mesa em horripilante banquete?
Olhai nestes olhos o escarlate
Sangrento que persegue o massacre
Ante a carnífice dor lancinante!
Enfrentai, pois, minhas garras
E o furor de todo o exército macedônio!
Já o conheceis bem do campo de batalha,
E vossa presença pressinto sempre
Na iminência da carnificina!
Assemelham-se a morcegos,
Mas sobrevoam as falanges como abutres,
Farejando o sangue de suas veias
E imaginando-o copiosamente a verter
Dos corpos frescos ou pútridos!
Assim que ouvem o tilintar
Violento do tétrico banquete servido
E o som do metal a talhar carnes, tendões e ossos,
A circular dança ritualística da morte
Cessam com melodia tão dileta
E ao solo se precipitam como aves de rapina,
Ainda que necrófagas, misturando-se ao caos
Beligerante que em nada se assemelha ao Caos
De vossa noturna estirpe, encobrindo as garras
E caninos que dilaceram, sugam e desmembram
Em cruento e deleitoso ofício!
Ah! Não ouseis tocar
Ao mortal por mim protegido!
Da carne e do sangue dos macedônios
Pouco vos alimentastes,
Posto que não o permiti,
E miríades de corpos inimigos
Lançamos ao solo manchado
Para que vos servissem de alimento,
Então, saciai vossa fome e vossa sede,
E com as vísceras satisfeitas,
Temei a cólera de meu pai Tonante
Que minhas veias inflama,
E de nós afastai-vos sem resistência!
Certamente não querereis
A mim enfrentar como igual,
Como Quer macedônia,
E se a Ares intencionais
Envolver na contenda,
Sabei que estou protegido
Sob a égide de Atena
E conto com os favores de sua destra!
Não quer o Nubícogo que hoje
Nos enfrentemos em querelas,
Mas se vos sentis vitimadas pela injúria,
Ó Queres execrandas,
Podeis me buscar no calor bélico
Dos campos da morte,
E então provareis da força
Que o mundo mortal mais teme
– Nice elegerá quem sairá vitorioso!
Ah! Meu cobiçado Heféstion!
Sei que não queres me ver
Como Quer entregue à cólera,
E tampouco do Deus da Guerra
Ou das Queres quer se lembrar a Olhicerúlea
Ao nos cobrir com sua égide,
Então afasta do teu coração
Todo o temor: ainda que Tânato
O tenha arrancado de meus braços
Com violência e ainda que vítima
Tenhas sido de exicial veneno,
Te entregaste ao seu sono
Com a suavidade de um beijo
– ao menos o Filho da Noite
permitiu este último cortejo!
Nisso confiarei e já não me importarei
Com suas irmãs terríveis,
Que apenas poderão
Provar as águas do desejo
Que inundam suas bocas sedentas
Ao cobiçarem teu corpo no leito!
Oh! Não sabes o quanto
Estou confuso ao ver teu corpo
Admirável e nele não mais poder
sentir a vitalidade e virilidade
Que o tornavam adorável
E encantador – indeclinável!
Senti-me como Afrodite
A derramar icor e lágrimas
Sobre o corpo inerte de Adônis!
E enquanto sentia emoções
Tão intensas por ela insufladas
Em meu peito a cada suspiro
E a cada beijo desesperado,
o corpo senti invadido – violado –
Pelo temperamento destrutivo
Do Ares “demolidor de muralhas”
A derrubar as defesas de Atena
E soterrar até mesmo a ternura
De sua proibida amante áurea
– Olimpiano detestável e indolente!
Agora,
Ao sentir meus lábios
Molhados de amargura
Salgarem os teus ressecados
Pelo amargo veneno,
Volto a me sentir amante:
A “amante do riso”,
A amante de Adônis,
De Apolo, de Dioniso!...
De Heféstion!
E entre as lamentações e o pranto
Da Deusa Dourada,
Volto a ouvir a voz sábia
Da “virgem de olhos de coruja”
– a sabedoria e a pureza de uma,
permitem o equilíbrio entre o amor
e a concupiscência da outra!
Conheces minha mente
E meu coração, então sabes
Que neles fala a Deusa Indômita!
Afastarei temporariamente os temporais!
O pouco tempo que nos resta
Não será desperdiçado com emoções
Antagônicas aos profundos
Sentimentos que nutríamos
– o amargor e clamor das Erínias deixarei
para quando este recinto deixares!
Neste momento apenas quero
Cuidar de ti e me lembrar
De como eras na intimidade,
Do quão exultante me deixavas
E de como adoravas ver
Meu sorriso e ouvir meus risos!
Lembro-me que dizias
De forma graciosa que um dia
Em um Deus da Guerra
O Pai Soberano me converteria
Se fizesse como fez ao grande Herácles
E me levasse ao Olimpo
A fim de me alimentar
Com ambrosia e néctar divino,
Mas que mais risos ao odioso Ares
Provocaria que ciúmes,
Posto que os Celícolas
Com a Deusa da Guerra
Me confundiriam amiúde!
Ó desditado!
Como poderei falsear a dita
Para sentir-me ditoso?
Ainda que o intente,
Sinto-me desditado como tu,
Pois clamam por teu corpo
Os imperativos ditames
Do divo que impera
Sobre o Mundo Subterrâneo!
Ao passar por aquela porta,
Devo tratar dos graves assuntos dos homens:
Do teu funeral e da seva e cega vingança!
Nossa despedida estendi em demasia
E agora devo partir, pois esfrias
No leito que antes ardia
E teu corpo há de ser preparado
Para que arda nas funéreas piras,
Nas Chamas de Hades,
Para que realizes a fria travessia
Do Aqueronte e não salgues
O lutuoso rio com tuas lágrimas;
Para que possas chegar aos Elísios,
Onde nos uniremos quando Zeus
Assim o deseje – quando cruzares
o rio e o portão atravessares,
receber-te-á como um Herói
“aquele que recebe muitos”!
Terás o funeral mais esplêndido,
O maior já feito! Diante da pira
Falarei com os lábios mudos
No silencio da dor e do amor!
Direi em meu coração
Que trocaste o fogo
Do teu corpo sedutor
Pelas chamas da morte!
Direi que o perfume
Da tua pele oleada trocaste
Pelo aroma defumado
Do corpo que pela última vez
Inflama não de prazer
Ou de desejo como outrora,
Posto que se tornou invulnerável
A toda sensação de ardor,
Mas que se entrega vulnerável
Aos seus efeitos destrutivos,
E por eles é, por fim, consumido!
Mas o que direi
Quando olhar a Noroeste?
Quando a fumaça chegar ao Olimpo,
Qual dos numes poderei acusar
Por degustar o sacrifício
Ao se deliciar com o aroma?
Ou à morada dos Sempiternos não chegará,
Desviado pelo sopro do Zéfiro?
É para ele, afinal, o sacrifício,
Como quando roubou de Apolo
A vida de Jacinto?
Pai Crônida,
Por que não detivestes
O fatídico disco?
Por que exigis o amor de teu filho
Macedônio em sacrifício?
Por que não detivestes
A fria tesoura de Átropo?
Pelo sangue Heráclida
Que corre em meu corpo,
Sei que nem vosso mais amado
E poderoso filho poupastes
Do cruel destino ditado
Por Hera e por Ftono escrito!
Ó Hefestion, direi que foste
Meu dia com teu olhar Apolíneo,
Com o fulgor áureo das setas
Eróticas que atravessam o peito
E tornam os homens cativos do amor,
E já não querem mais saber de guerras,
Disputas e contendas, apenas da rendição
Incondicional e total entrega a ele!
Ao tentar resistir ao teu cerco,
Sofri minha única derrota em batalha!
Com minha rendição
Entre tuas coxas e carícias,
Recebeste prazer em abundância
Como cobiçado despojo de guerra!
Vencedor e vencido,
Foi sobre o teu solo conquistado
Que erigi minha Alexandria
Mais apaixonada e triunfante,
Onde semeei os valores
Do amor mais nobre e puro!
Um dia cantarão
Nas alexandrias pelo mundo
Os feitos de um semideus
Que amou ao mais belo
E valoroso dos mortais:
Assim como um dia
Cantaram o amor e a morte
De Aquiles e Pátroclo,
Um dia cantarão
O amor e a morte
De Heféstion e Alexandre!
Dorme o sono de Tânato,
Meu amor, e quando nos Elísios
Repousando estiveres,
Bebe apenas uma gota
Das águas que correm no leito do Letes
Para a amarga despedida esqueceres
E para que ditoso apenas penses
No doce reencontro;
Deixa para no Mnemósine
Sabiamente saciar tua sede!
Sempre serás grande homem,
Grande amigo e grande amante:
Sonha com os melífluos olhos favos
E com os luzidios cabelos flavos
Ondeantes do teu adorado
Alexandre, ó grande!
Julia Lopez
04/10/2014
Nota sobre a foto: montagem com a foto de uma estátua de mármore de Alexandre, o Grande (Grande Museu Arqueológico de Istambul); foto da escultura “Vênus e Adônis”, de Antonio Canova (1789); foto de um busto de Alexandre Magno.
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