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IV. Stabat Mater Dolorosa
De um tempo
Antes do tempo
– antes do meu –
Perdido no passado sombrio
Que se quer esquecer,
Ouço o pranto dos inocentes,
O pranto da vida e o pranto da morte
Que se confundem e misturam
Em uníssono, em um eco
A ressoar assustadoramente
Pela alma e pelo tempo
– no passado se aproximaram demasiado,
e no presente ressoam sincronicamente!
Na eternidade ouço na forma
De canto o divino verbo daquele
Anjo lúgubre que obscurecido
Pela seriedade e rigor da morte,
Mantém oculta sua verdadeira face,
Sua inocência de menino!
A figura anciã do Anjo da Morte
Traz à lembrança a criança
Ao entoar um Stabat Mater Dolorosa
Como um Castrato
Na Catedral da Eternidade,
Onde o passado e o futuro ressoam
E soam como dor no presente,
Em um eterno agora!
A melodia contristada
E os versos lancinantes
Tocam minha alma
Quando o Anjo canta os versos
De uma dura espada
De uma antiga profecia
Enterrada na alma
Agoniada de Maria!
Penso em seu coração jubiloso
Sendo friamente atravessado
Pelo Profeta no Templo de Jerusalém
Quando este cruelmente
Deixou de profetizar as maravilhas do Filho
Para profetizar as dores da mãe:
– Uma espada trespassará a tua alma!
O canto tétrico
Toca minha alma
Com a violência da lança,
Do espinho e da espada,
E de ti me compadeço em lágrimas
– as águas do Mar Morto!
Ouço o Anjo fúnebre
Cantar apenas o Stabat Mater
E passo a entoar junto a ele
Meu recém-composto Stabat Pater
Contrapondo o Castrato em um moteto,
Pois as dores do pai são ignoradas
Pelas Escrituras e pela tradição,
Mas por mim nunca serão esquecidas,
Ainda que tenha que inventar um novo hino
E iniciar uma nova tradição
– o pai também sofreu
as dores da mãe e do filho!
Canta o Anjo tuas penas,
Ó Maria, ainda que não o saibas!
Sabe que canta o Anjo apenas tuas penas,
Mas considera que estarei entoando as penas
Do amoroso pai até o fim
– faz com que ele o saiba!
Qual Profeta e Poeta escrevo
O canto da Morte como um Hino
Em memória da Luz – ouve-o!
Canta o Anjo que tiveste teu aviso,
Então a ele pergunto:
De que serve o aviso da Morte
Ao coração de uma mãe,
Quando esse nutre todo o corpo
Com o amor e a esperança
Que nascem da alma?
Canta o Anjo que não ouviste
Sobre profecias e espadas,
Mas que podias ler os sinais
No luciano e recém-nascido receptáculo,
No coração frágil demais,
Humano demais para receber tanta luz,
Para receber uma alma
Tão bela e tão luzidia!
Então conto ao Anjo
Que vias tanta luz emanar
Daquele peito pequeno e frágil
Que nada mais podias ver
– o júbilo e o esplendor te cegavam!
Conto ao Anjo
Que chegou a punhalada
Sem aviso em teu coração,
Que darias com alegria seu palpitar
Por mais um choro
E não por um silêncio
– na verdade,
trocarias teu coração
pelo coração dele!
Sentiste o punhal
Tão profundo no coração
Que chegou até a alma
– canta o Anjo sobre a chaga
que cicatriza no coração,
mas nunca na alma!
No punhal sentiste a frieza
Da espada de Herodes
No Massacre dos Inocentes!
Não choraste ao pé da cruz
Como a mãe de Deus,
Mas viste a luz do teu filho
Se esvair dos olhos em um leito!
Canta o Anjo
Sobre o drama do Sol e da Lua,
Sobre o prematuro nascimento
Da luz e sua prematura morte
No mesmo ponto do teu Universo,
Naquele leito onde vidas
Surgem e desaparecem,
Leito onde a vida nasce, escorre,
Corre e se esvai caudalosa
Sobre as areias do tempo!
Foi nesse leito
Em quarto minguante
Que a luz viveu um quarto
Do ano para depois ascender
Cada vez mais no Céu,
Se afastando da tua face
E ocultando-a sob um véu
De Lua Nova que revelou
O cintilar do teu pranto
De chuva de estrelas
– tinhas esperanças
que do Céu continuaria
a iluminar os teus dias!
Canta o Anjo que em oração
Choraste o Terço das Lágrimas
Da tua vida, e que o fizeste
Recordar o quanto chorou
Quando a terça parte
De seus irmãos foi lançada
Como joio ao solo da Terra!
Canta o Anjo
Que não pudeste ver
Teu filho brilhar,
Mas que poupada foste
De vê-lo pecar
– permanecerá inocente
e puro até o Grande Juízo!
Canta o Anjo
Que não pudeste sentir o seu beijo,
Mas que foste poupada
De sentir o seu desprezo!
O homem que não pôde ser,
Será para sempre um menino na eternidade,
Iluminando a escuridão do mundo
Dos homens e dos anjos!
– Por que tão prematuramente
Levar a um Anjo inocente?
Por que a chama se acendeu
E logo se apagou?
Em que pode a luz ter pecado
Ou qual pecado posso ter cometido
Para que ela fosse assim tirada de mim,
Deixando-me em trevas?
Enquanto te culpavas,
Dizia-te o Anjo da Morte:
– Se é a vontade do Pai,
Onde está a minha
E a vossa culpa?
O que resta de culpa
Para mim e para vós?
Às vezes penso
Que não estava o mundo preparado
Para receber tanta luz,
Para tê-la habitando entre nós;
Na verdade,
Penso que o mundo não a merecia,
E por isso em Sua sabedoria
O Pai a levou de volta ao lar,
Mas sei que nem mesmo essas palavras
Teriam tido o poder de tua dor aliviar
Naquele momento excruciante!
Não o viste crescer e ser
Martirizado pelo mundo,
Mas sabem Céu e Terra
Que tua Via Crucis
Foi demasiado dolorosa!
Quando os espinhos do Destino
Feriam teu filho, dizias para ele
Que não eram os teus,
Que preferirias podar-te a feri-lo,
Que preferirias ser arrancada
E ao fogo ser lançada,
Que preferias estar em seu lugar!
Dizias a ele
Que jamais lhe daria cravos
Que não fossem flores e especiarias
Para perfumar e adoçar sua vida terrena!
Clamaste
À Nossa Senhora das Dores
Que levasse tua dor
Junto ao seu hino
Medieval e sacro!
Maria, como no hino,
Peço-te o espinho da dor
Para chorar contigo,
Para juntar as lágrimas
Que agora derramo
Às tuas deixadas
Como chuva na Primavera!
Lamento não ter estado lá
Para lamentar junto a ti,
Para te consolar
E compartilhar tuas lágrimas,
Mas ao menos pude
Com meu primeiro pranto
Trazer um franciscano alívio
E a esperança de veres
Com alegria teu rebento
Desabrochar e amadurecer,
Embora não fosse luz
E nem a substituísse
– amadurecido,
olho para o meu próprio rebento
e posso imaginar a dor que suportaste!
Não tenho essa fé sobrenatural
Que tens e nem sou divino
Para suportar tamanha dor,
Apenas tenho muito amor,
Devoção e alguns versos;
Uma elegia
Para quem conheço bem e muito amo,
Sobre aquele que nunca conheci,
Mas que sinto amar
No sangue que mana do coração
E se irmana no seio familiar
– na eternidade,
sinto no colo de minha alma
sua alma angelical e fulgurante!
Maria, em oração
Peço que te reconfortes
Com estes últimos versos;
Ouve o que Andrea Mantegna
Te diz em pinceladas e pigmentos:
– Ele apenas dorme em teu colo,
Embalado por amor, dor e lamentos,
Ele apenas descansa em paz;
E lembra-te que quando acordares
Do teu sono eterno,
Novamente o terás em teus braços
Para todo o sempre!
Nota sobre a foto: "Madonna with Sleeping Child", do artista Andrea Mantegna (1431-1506).
Nota sobre o áudio: "Stabat Mater Dolorosa", "Cujus Animan Gementem" e "Eia Mater", do Stabat Mater RV 621, de Antonio Vivaldi (interpretados pelo Contratenor Andreas Scholl); Stabat Mater Dolorosa (Largo Assai) do Stabat Mater (a due) de Giovanni Gualberto Brunetti (1706-1787).
Observação: Essa e as três primeiras partes do Poema compõem a obra escrita em memória de Luciano, meu amado irmão que nasceu com insuficiência cardíaca e faleceu antes do meu nascimento devido a complicações, com apenas quatro meses de idade; não deixa de ser uma homenagem a Maria (mãe), Jair (pai) e Maycol (irmão mais velho), que vivenciaram os eventos reais relatados aqui de forma poética!
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Esse Poema é parte integrante do Poema "IN MEMORIAM: LUX AETERNA!".