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III. Matutina Tenebrarum
Como entender o ofício
Do Anjo da Morte,
Que como em um Ofício de Trevas
Apaga vela após vela,
Chama após chama
Com seu sopro gélido
Ou com os movimentos
Medonhos de sua gadanha?
Como entender as ordenanças
De seu poderoso Senhor?
No túnel escuro
E frio da eternidade
Olho para trás e vejo
A ofuscante luz da vida;
Olho para frente e vejo
A luz mortiça que brilha
Além da morte, tão intensa
Para os que ali chegam!
A lutuosa luz não me atrai,
E na infinitude do espaço-tempo
Vejo a brevidade do túnel
Que não sinto
Como tua linha do tempo,
Mas apenas como um familiar
Nó de galhos retorcidos e espinhosos
No fio que forma
O grande rosário dos teus dias,
Com todos os seus mistérios,
Como uma conta primaveril
De rubras pétalas moídas,
Secas e perfumadas
– rosário no qual rezavas
o terço doloroso!
Ouço o Réquiem
Do coro de Anjos da Morte
Ressoar desde o matroneum
Onde aguardam a saída da luz,
Obscurecida pelo altar
Do santo sacrifício
Na catedral dos ritos marianos
Que sangraram teu coração aflito, Maria!
Volto a olhar para trás e vejo
As sombras do teu passado,
As sombras da tua Árvore da Vida,
Formadas pela luz que do mais alto
Te ilumina desde sua ascensão sofrida,
Forçando-te a amadurecer
Em um Verão intenso
Enquanto dentro de ti
Nada mais restava
Que um desolador Inverno!
Em tua Primavera vejo
Dessa luz o descenso
E seu triste decesso,
Tudo tão rápido, tão intenso:
Toda a Paixão em apenas uma Estação,
Contrariando o curso normal do Sol
De Inverno a Inverno!
Ao trazer
O luciano rebento ao mundo,
Fizeste desabrochar a Primavera
De forma esplendorosa!
Depois do longo inverno sazonal,
Sonhavas sentir novamente
O perfume de lírios e jasmins,
Mas o pesadelo não respeitou
O teu merecido descanso,
Posto que és roseira
E levas amor e sacrifício na seiva!
Pronto sentiste a presença
Do Anjo da Morte no campo florido
Dos teus ditosos dias!
Sentiste seu intenso
Perfume de rosas,
Um perfume lúgubre
Que evocava tristeza!
Viste o Ceifador caminhar
Delicadamente entre as flores.
A mortalha branca que lhe servia de manto
E cobria sua túnica negra,
Arrastava a vida
E deixava um rastro invernal
Murcho e taciturno.
Ele não estava com a gadanha;
Ele não fazia colheitas:
Austero, colheu apenas uma flor
E caminhou em tua direção!
Olhou para o berço
Onde embalavas a luz e olhou
Profundamente em teus olhos
Enquanto segurava tua mão.
Sentiste a alma acariciada
E reconfortada em um átimo
Além do tempo e do espaço
– na eternidade, que à Morte
e aos seus Anjos pertence.
Quando regressaste ao presente,
Viste o lúgubre Anjo desaparecer no crepúsculo.
Em tua mão deixou a bela flor de maracujá,
E cingindo tua cabeleira uma coroa de rosas.
Intentava seduzir-te
Com a beleza e o perfume?
Convidava-te para com ele
Partires de mãos dadas?
Preferias que assim fosse,
Mas ao contemplar a beleza da flor,
Viu na forma a coroa de espinhos
E na cor roxa o sangue de Cristo derramado;
Nas gavinhas viu os açoites,
Nos estigmas os três cravos
E nas anteras as cinco chagas!
Não era uma flor romântica:
Era a Flor da Paixão,
Mas da Paixão de Cristo,
E logo temeste por teu filho!
A coroa de flores
Era a Coroa da Morte
Com a qual, ao fim,
Todos somos coroados
– sabias que apenas
a guardavas para alguém,
pois com ela ninguém
é em vida coroado!
De um modo delicado
– até a Morte te respeita –
Te avisava que de forma prematura
Passarias pelas duras e maristas
Provações do espinho!
Olhaste para o iluminado berço
E sentiste o coração cravejado
De gemas e de cravos
Começarem a desprender
Águas-marinhas
Em lágrima lapidadas!
Com força abraçaste
Ao pai da luz em teu leito,
E sobre seu ombro olhaste
Para o berço na escuridão silente
Da noite solitária e aterradora!
Arrebatada pela rutilância solar
Dos olhos cerúleos do luciano filho,
Imersa em tanta luz e amor
Que te deixavam
Em constante estado de graça,
Para ti se passaram
Como um raio os dias e as noites
Sem que pensasses em tempestades,
E enquanto contemplavas alegre
As flores desabrocharem lá fora,
Pelas janelas e portas entrava
O sopro gélido da Morte
Lembrando o Inverno recente,
Porém, mais cruel e rigoroso!
Extemporâneo,
Murchou o rebento
Antes que pudesse
Desabrochar Primavera e colher Verão,
Antes que pudesse ver o Outono
– preparava o Anjo Ceifador
prematuramente sua colheita de Inverno,
seu aterrador rito frio e tétrico!
Como Oficiante deu início
Ao Ofício de Trevas,
Trazendo Inverno à tua Primavera!
Durante o ritual
Ouviste uma voz vinda do leito:
– “Esta é a vossa hora
E do poder das trevas!”
Olhaste para ele
E viste teu filho estender
Os braços pequeninos
Para o Anjo lutuoso,
Pronto para adormecer
Em seus álgidos braços
– com o pai ao seu lado,
entregava o inocente
seu Espírito ao Pai em sacrifício,
como o fez Cristo a Deus
após ser por Ele abandonado!
Quiseste ir em seu lugar
Ao ver a luz se esvair
Pouco a pouco;
Oferecerias tudo,
Tua própria alma se preciso,
E teus lamentos e preces
Se mesclavam às últimas
Lamentações e preces
Do Ofício de Trevas!
Com estrépito encerrou
O Anjo da Morte a liturgia
Imerso em trevas
Ao fechar o Livro da Vida,
E com o susto despertaste
Na noite escura
E tempestuosa da alcova!
Ao ver o berço vazio
E cada clarão lembrar o filho,
Sentias a alma vazia,
O seio tempestuoso
E a face chuvosa,
Então o mesmo Espírito
Que trouxe a luz ao teu ventre
Disse em teu coração
Que a chama não se extingue,
Que a luz não se apaga,
Que não deixa de existir,
Apenas assume outras formas,
Habita outros corações,
Ilumina outras trevas
E as trevas de outros mundos
– a luz se apagou aqui
para regressar à sua origem,
brilhando alto no Céu: Fiat Lux!
Regozija-te, Maria:
A vela cândida e imaculada
Do Ofício de Trevas
Sempre permanece acesa,
Apenas atrás do altar é ocultada,
Aguardando o tempo certo
Para reaparecer
– certamente ao teu lado,
na ressurreição do derradeiro Juízo!
Nota sobre a foto: "Madonna Dolorosa: Terço de Lágrimas pela Paixão do Filho", da série de 4 telas pintada especialmente para esse Poema pela talentosa Artista Plástica Cleonice C. Quinsler, intitulada "Perspectiva Mariana Sobre a Incorruptível Luz Eterna". Deixo aqui minha profunda gratidão pelo tempo que minha prima carinhosamente dedicou à pintura dessas telas, unindo sua arte à minha em uma emocionada homenagem familiar!
Nota sobre o áudio: trecho inicial do Ofício de Trevas 28. Matinas de Sábado Santo - Responsorium V: O Vos Omnes, do Padre José Maria Xavier (1819-1887); "Agnus Dei", 5° parte da Missa Pro Defunctis, Op. 187, de Amaral Vieira; "Lacrimosa" (final da "Sequentia", 3° parte do Réquiem RV 626, de Wolfgang Amadeus Mozart).
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Esse Poema é parte integrante do Poema "IN MEMORIAM: LUX AETERNA!".