MANTO DE HÉRCULES
I – Invocação a Juno (Confissão Negativa)
Ó Fortuna, que a todos iludis
Com vossas falsas esperanças de favores,
Onde está vossa venda obscura?
Por que a retirais ao girar
Vossa grande roda contra mim?
Por que não me favoreceis?
O que fiz para aborrecer
Aos orgulhosos Sempiternos?
Orgulhosa e majestosa Juno,
Filha de Saturno e Cibele,
Olímpica Rainha que os frágeis
Lares mortais protege,
Bracinívea deia olhitáurea,
Escutai a confissão negativa
Desse infeliz mortal que em pedaços
Cai aos vossos pés delicados!
Não sou herói ou imortal!
Não sou deus ou semideus!
Não sou o paladino do Olimpo
– tão sonhado pelo pai de homens e deuses –
Destinado a purificar o mundo
Destruindo as bestas remanescentes
Do Caos e da Titanomaquia!
Não pertenço à conspícua
Casa Real dos Pérsidas!
Não venho de uma semente
Altitonante e pérfida!
Não me alimentei indevidamente
De vosso seio e por ação de meus lábios
Não se derramou a Via láctea
Ou as gotas alvas e puras da flor-de-lis!
Tampouco vosso alvo seio flechei
Para que à Fúria alimenteis
Com o áureo icor derramado!
Não tenho sangue imortal
Animando a um corpo mortal
Privilegiado e ilegítimo
– sou filho legítimo
de um casal mortal que conta
com a vossa proteção divina
e respeita vossos preceitos!
Não tenho a traição no sangue,
E não a tenho em minha vida:
A fidelidade trago como herança maior
Do honroso lar paterno
– perguntai à Megera se algo
tem a testemunhar contra mim!
Não falto com sacrifícios
E libações aos deuses!
Não sou o herói,
Não sou o semideus,
Não sou o poderoso Hércules,
Então, o que tendes contra mim,
Auritrônia deusa veneranda?
Tenho um pouco
De cada imperfeição ou virtude dele,
Pois sou tão humano
Quanto o mais humano dos heróis
– o mais mortal dos imortais!
Mas se é certo que não realizei
Grandes feitos como os seus,
Também não cometi crimes semelhantes
E não venho de uma relação ilícita
Que a vós afronta, aborrece e insulta!
Não lavei o marmóreo e negro piso
Do Palácio de Plutão
Com sangue inocente e infante
– meu próprio sangue –
Em um ato de loucura incitado
Pela loucura de deusas cruéis e ciumentas
– bem o sabeis; não precisais indagar a Febo!
Portanto, o que tendes contra mim,
Veneranda filha do grande Saturno?
Qual foi o meu delito?
O que é tão grave
Que merece tamanha expiação?
Nada tenho a ver
Com o hercúleo herói
E sequer Heráclida sou, então,
Por que me destes uma Dejanira?
Por que a mim ofereceis
Os derradeiros tormentos
Do grandioso filho de Júpiter?
II – A Marca de Dejanira (Expiação Hercúlea)
Juno excelsa, dizei-me
Quais atos por mim cometidos
Vos levaram a unir meu destino
Ao daquela jovem, selando-os
Em um jarro por ela rompido,
Liberando males irremediáveis
– como o fez a desejável Pandora!
Dizei-me por que
A mim condenastes
Aos atos de Dejanira
E sua indelével marca!
Ao vê-la, senti o coração ferido
Pelo crespo e imprudente Cupido
E acreditei ser a bela jovem
Um raro presente divino
Diferente daquele dado a Epimeteu,
Talvez brindado pela jovial Vênus,
Pois era como a estrela mais brilhante
– a primeira a cintilar no poente
e a última a desvanecer no nascente,
minha estrela-guia ofuscante!
Vesti o manto que dela recebi,
O manto do seu amor, tornando-a
Parte de mim em eterna aliança!
Mas a jovem não era
Tão inocente quanto Dejanira,
E embebido estava o manto
Em algo mais que o veneno
Do ciúme ou da fera Hidra!
Senti a felicidade e a vida
Serem sugadas junto ao amor e à pureza;
Senti o veneno do desprezo,
Da intriga, da discórdia
E do ódio penetrarem a carne!
Senti uma dor lancinante
E desesperado tentei arrancar o manto,
Mas éramos um só;
Senti a pele desgarrar
E nacos de carne serem arrancados
Em uma tortura excruciante e sanguinária
Que tingia o tecido envenenado
Com a coloração da paixão!
O manto a mim regalado
Pela pérfida mortal
Superava em crueldade
Ao manto que o centauro
Em seu sangue imbuíra
Para dá-lo a Dejanira,
E assim como o manto de Hércules,
Cumpriu ele seu esfolador e tétrico
Destino em minha despedaçada vida!
E em meio à desgraça ocasionada,
Nela não vi o coração de Dejanira;
Não a vi se entregar aterrorizada
À forca ao ver o que fazia
Ao arrancar pedaços, ao levar parte
De mim e me deixar morto em vida,
Pois o fez de forma intencional!
Ela se foi, mas não à morada de Plutão;
Apenas se foi de minha vida
Sem arrependimentos, sem dor,
Sem inocência – está bem viva!
Mas assim deveria ser,
Pois jamais seu sofrimento
Ou morte desejei;
A Morte busquei para mim,
Por ela clamei no único instante
Em que seu toque parecia refrescante,
Suave e doce qual veraneia chuva,
Mas desisti ao ver que ainda restava
Carne e sangue ao me livrar do manto;
Carne de minha carne
E sangue do meu sangue:
Um inocente infante!
Por ele vos dirijo essa súplica,
Satúrnia deia, pois nada tenho
A ver com o herói hercúleo!
Aliviai o peso de vossa cólera
Para que a carne regenere
Nessa insuportável sobrevida,
Ainda que deixe profundas
E horrendas cicatrizes
– com elas hei de conviver
e placidez hei de buscar!
Ardilosamente já lograstes
Que fosse o grande Hércules
A vós oferecido em sacrifício
Para aplacar vossa ira terrível!
Ao contrário do infeliz herói,
Não me atirarei na pira a fim
De trazer ao meu sofrimento alívio
– aceitai-me assim em sacrifício!
Dar-me-ei em sacrifício ao amor:
Suportarei a tortura, toda a dor
E sofrimento por amor ao sangue inocente,
E não por expiação
– não destruí vidas tomado pela loucura;
dou minha vida de forma consciente!
Não me verás ao Olimpo
Com honras ser levado
A beber a imortalidade
Nos doces lábios de Juventa,
Mas meu ato de amor e sacrifício
Ecoará pela eternidade
E pelos olímpicos pórticos dos templos;
E comoverá a homens,
Deuses e aedos
– a centelha do meu amor é imortal!
Guardo, todavia, a esperança de Pandora
Que me faz acreditar que em meu sacrifício
Me libertei de tantas dejaniras e pandoras,
E que ao fim poderei reencontrar a líbia Ônfale
Para voltar a me entregar à servidão em seu umbigo
E em seu seio, onde espero ainda me encontrar!
Peço o fim da cólera dos deuses!
Peço o fim da espúria condenação!
Peço o fim dessa hercúlea expiação!
Julia Lopez
06/09/2013
Obs.: por razões poéticas utilizei o termo “manto” no lugar de “túnica”, que é o mais adequado. No entanto, não o fiz de forma descuidada ou desprovida de sentido! A clâmide era um tipo de manto que era utilizado por cima da túnica ao sair de casa, mas os homens mais jovens e os guerreiros costumavam vesti-la diretamente sobre o corpo nu, como pode ser observado nas esculturas e afrescos do período.
Foto: Hércules, Dejanira e o Centauro Nesso, de Bartholomeus Spranger (1580 - 1582).
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